quarta-feira, 30 de julho de 2008

Cais Bar



Cais Bar tinha o horizonte e a promessa de felicidade. Não era somente um bar, Cais Bar era o lugar que elegi para me criar. Localizado na Praia de Iracema, em Fortaleza, foi nesse lugar que eu conheci a poesia, a autêntica música brasileira, os primeiros amores e também as longas esperas. O proprietário era obcecado por música e fez de lá um templo para seu culto. Instrumentos musicais eram expostos como santos. A música moldurava o pôr-do-sol e as pessoas comungavam “feijoada com chorinho”. Nas paredes, panéis com as caricaturas dos maiores intérpretes e músicos do Brasil. E, com tudo isso, a paisagem era apenas um terceiro elemento: a luz da aurora como cenário de um lugar santo. Todos os fins de semana eu ia a esse ritual sagrado. Aos sábados, os músicos começavam a tocar na hora do almoço até alcançar o outro dia. A noite passava com alegrias sutis e havia o momento em que o corpo descansava porque o espírito se erguia. Afinal, o que realmente importava era a comunicação que havia além das palavras. Era a hora em que o mundo esperava, que o ar congelava e tudo simplesmente existia. Momento que o homem era mais que um homem. E que não era preciso pensar sobre a luta de classes, a natureza humana ou sobre o céu e o inferno.
Alguns dias eram mares bravios, outros luas repousantes. Segunda era o dia da apresentação dos músicos regionais. Poetas, artistas, intelectuais e estudantes se encontravam na cumplicidade de uma mesma busca. Era quando o silêncio dominava e algum artista tardio atravessava as escadas do cais. O coração batia ao reconhecê-lo e as palavras se desenvolviam no nada. Era nesse período de vazio, sem promessas, que o espírito se alçava e voava livre. Só se ouvia o próprio sentimento e a música tocava novamente, não como o fim de um silêncio, mas como o auxílio bendito de uma outra adoração.
Cais Bar era meu lugar no mundo. Um bar que me apresentou as coisas e os valores que atualmente trago em mim. Saí de Fortaleza, mas continuei a freqüentá-lo nas férias. Os garçons se tornaram grandes amigos e sempre me senti voltando para minha própria casa. Mas houve o progresso e tudo mudou. A região onde estava o Cais Bar foi afetada diretamente pelo turismo institucional. Em lugar da música, meninas eram vendidas por alguns dólares. “Meu bar” foi um dos últimos pontos de resistência. Em plena época de alta temporada fechou as portas e se manifestou contra o turismo sexual e predatório. No entanto, não conseguiu se manter com as exigências desse novo contexto. Enquanto a cidade se desenvolvia, meu lugar sucumbia. Cais Bar agonizava na medida em que eu perdia a minha fé. O lugar morreu assim como também morreram todas as minhas ilusões. Atualmente, vivo na ‘selva de concreto’, mas é inútil esquecer: há uma ausência. A falta de um lugar onde se encontra a si mesmo. Inútil fugir para outra cidade, pois viver à margem da orla e das estrelas não substituirá a memória do que fui e do que senti. Atualmente, a noite de Fortaleza não tem o mesmo encanto e a lua reflete apenas a sombra de um lugar que já padeceu. Ao invés de Cais Bar prevalecem espaços simulados e as recordações de um tempo que passou. Assim mesmo guardo uma certeza: há um modo mais leve de existir.

6 comentários:

Luísa disse...

Tive a felicidade de ir ao cais bar contigo uma ou duas vezes, e me recordo nostálgica das noites quentes de Fortaleza, quando nossa felicidade era imensa e inocente. A felicidade de hoje é brilhante, também. Se a sombra existe, é para chamar a luz. Um beijo grande.

Beatriz Saraiva disse...

Que lindo, Aninha. Obrigada por esses lampejos de felicidade num momento de tanta nostalgia...

Leonardo Sá disse...

Maíra, o Cais Bar era o lugar do fluxo de nossos olhares embriagados, brilhantes e foscos pelo efeito da noite e da maresia; do sabor finito da nossa impaciência ainda não prevíamos o deslocamento de desesperanças. Estávamos a descobrir o entre-lugar a partir de onde, podemos nos localizar nessa zona vazia da escritura. Espectro da criação. Vazio da invenção do sentimento que nos rodeia e nos inunda de significação, de vida significativa, ao ponto de tocarmos ao longe os sentidos de outros corpos, criados e produzidos pelos mesmos lugares e dilemas. Forte abraço com cerveja e pedacinho do céu.

Beatriz Saraiva disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Beatriz Saraiva disse...

Leo, bom ver você aqui nesse universo de subjetividades. Fico feliz em poder dialogar contigo sobre as percepções e os sentidos que são dados sobre uma época e um lugar. Bjos com gosto de pedacinho do céu pra vc também (ai que vontade de experimentar de novo aquele prato !!!!)
P.S:. Foi fácil demais descobrir a minha identidade secreta. Assim não tem graça....

ROBERTO F. disse...

POXA MAÍRA...COM TUDO QUE VC RELATOU,É COMO SE EU ESTIVESSE POR UM MOMENTO,VOLTADO AO CAIS...ÀS VEZES NEM PROCURO LEMBRAR,DÓI UM POUCO.MUITAS VEZES PASSEI POR ALI DEPOIS DO TÉRMINO DO BAR E FIQUEI ME PERGUNTANDO POR QUE DETERMINADAS COISAS TERIAM QUE TER FIM.FUI AO CAIS ATÉ O SEU ÚLTIMO MOMENTO...OS MENINOS DO BAR COM O ESTOQUE DE BEBIDAS ACABANDO,OS AMIGOS PARANDO DE FREQUENTAR O LOCAL POR ACHÁ-LO PERIGOSO.EU AINDA IA SÓ...DECIDIDAMENTE FEZ PARTE DA MINHA VIDA NÃO APENAS COMO UM SIMPLES BAR...ERA UM DOCE REFÚGIO.ILUSOES,MUITAS ALEGRIAS E POR QUE NÃO TB ALGUMAS TRISTEZAS MISTURADAS AO EXCEPCIONAL ASTRAL DO LUGAR.O CHEIRO DE MAR NO FIM DE TARDE E BOAS GARGALHADAS CANSADAS E TRÓPEGAS NO FIM DE NOITE...MEU DEUS COMO TUDO AQUILO ERA BOM!NÃO TE CONHEÇO MAS FICO FELIZ EM VER QUE TEM PESSOAS QUE LEVAVAM TUDO AQUILO REALMENTE Á SÉRIO.BJO NO CORAÇÃO E PARABÉNS PELO ÓTIMO TEXTO. ROBERTO F.